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Atlas: Fortaleza, Ceará, Brasil

Padre Cícero, Dragão do Mar e outras lendas do Ceará

Foi um ato de desobediência que levou o menino Moa a se perder de seu avô. A cada desconhecido que encontrava pelo caminho, ele ia percebendo que, além de não saber mais onde estava, também já não sabia mais em que tempo estava. Essa é a premissa do musical Ceará Show, que, de quinta a domingo, conta um pedacinho da história do estado num espetáculo colorido e envolvente.

Quando visitei Fortaleza, a peça foi uma das minhas maiores surpresas. Eu não sabia do que se tratava a montagem, que está em cartaz desde outubro de 2016, fruto de uma oficina de formação de atores, bailarinos e artistas circenses.

Os personagens são inspirados em figuras históricas (quase todas reais) da história do Ceará e do Brasil. Mas, se você estudou em outra região do Brasil, é bem possível que não conheça a maior parte das lendas que fazem parte da história de Moa. Enquanto você não assiste ao Ceará Show, algo que recomendo fortemente, caso visite Fortaleza, a gente conta um pouco mais sobre esses personagens, que mereciam mais páginas nos livros de história.

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Dragão do Mar: herói abolicionista

Lá por 1881, Chico da Matilde era um jangadeiro de Canoa Quebrada. Nessa época, os movimentos abolicionistas já pipocavam no Brasil. Mas, para todos os efeitos, a escravidão ainda era lei. Quando Chico, que também era negro, se viu obrigado a transportar escravos em sua jangada, ele quis dar um basta. Organizou, ao lado de outros jangadeiros, uma greve e se recusou a fazer o serviço.

Graças ao episódio, ele foi parar na capa de uma revista da época e logo foi alçado ao status de herói abolicionista, o que era muito conveniente para outras pessoas que também lutavam pela abolição no Ceará. Como herói, Chico foi, com sua jangada, para o Rio de Janeiro, onde recebeu o apelido de Dragão do Mar. A escravidão deixou de existir em 1884 no Ceará, quatro anos antes da Lei Áurea.

A parte em que o Dragão do Mar aparece no Ceará Show foi a minha preferida. Dá para ter uma ideia de como é aqui:


Confesso que nunca tinha ouvido falar no Chico da Matilde e que não encontrei muitas informações na internet sobre a vida dele. Sabe-se que ele tinha talento para a navegação, apesar de ter tido uma vida humilde. Sabe-se também que, depois do movimento abolicionista do Ceará, Chico deixou de ser jangadeiro e passou os anos seguintes de volta à humildade e ao anonimato.

Jovita Feitosa: a Mulan brasileira

A história de Jovita Feitosa extrapola as fronteiras do Ceará. Ela ainda era uma adolescente no Nordeste quando estourou a Guerra do Paraguai, no Sul do País. Disfarçada de homem, ao melhor estilo Mulan, ela resolveu se alistar. Nesse ponto, há uma divergência nos registros históricos. Uns dizem que a motivação dela foi o patriotismo. Outros dizem que ela queria ir para o sul para não se separar do homem que amava.

Mas o plano de se fingir de homem não deu certo. Ela foi descoberta. Mesmo assim, o presidente do Piauí, onde Jovita morava na época, deixou que ela fosse para o Rio de Janeiro, onde os soldados eram preparados para a guerra. Lá, ela foi aclamada como a corajosa mulher que lutaria pelo Brasil (em tempos de guerra, o povo adora criar um herói). Só que, dessa etapa, Jovita não passou. O Ministro da Guerra não deixou que ela embarcasse para o front.

Cabe um parênteses: essa guerra é um episódio bem controverso da história do país, porque foi bastante injusta. Brasil, Argentina e Uruguai se juntaram para conter a ameaça do megalomaníaco Francisco Solano López, que queria expandir seu território. Só que, no fim, esses três países juntos acabaram destruindo completamente o Paraguai, que jamais conseguiu se recuperar.

E o que foi feito de Jovita? Sem poder ter chegado ao campo de batalha e abandonada pelo amante, ela se matou aos 19 anos de idade, em 1867.

lendas do nordeste

Padre Cícero: o sacerdote latifundiário

Tá, esse nome você conhece, né? Pode ser que reconheça até a figura de um homem baixinho, de batina e chapéu. Mas a história real do Padre Cícero é bastante surpreendente. Diferente do que eu pensava, ele não era um homem que conhecia na pele as mazelas da pobreza. Pelo contrário: Padre Cícero era fazendeiro e frequentava a alta roda da sociedade ali na segunda metade do século 19.

Na verdade, nem mesmo um bom aprendiz de padre ele foi. Dizem que, no seminário, não falava muito bem em público (habilidade imprescindível dos sacerdotes). Mas nada disso importa. O que importa é que, certa vez, ele teve uma visão em que o próprio Jesus lhe confiava a missão de cuidar dos pobres.

E pobre era o que não faltava na região naquela época. Ainda mais com as secas que assolavam o nordeste. O único consolo da população era a religião. Em 1889, uma hóstia dada pelo padre a uma fiel se transformou em sangue. A notícia viralizou e Cícero ganhou ares de santo milagroso. A princípio, o Vaticano não acreditou na história e até excomungou o padre. Mas a lenda já estava criada.

Lendas do Ceará

Depois do suposto milagre, Padre Cícero foi prefeito de Juazeiro do Norte e chegou a ser eleito deputado federal em 1926. E como todo político, ele transitava bem entre diversos setores da sociedade, tentando agradar gregos e troianos. Era anticomunista, mas tinha ligações com o cangaço. Era considerado pelos pobres um homem generoso e milagreiro, mas, apesar de padre, morreu sendo dono de vários imóveis, criação de gado, sítios e fazendas no Ceará.

A intenção aqui não é difamar o Padre Cícero. É bem compreensível que ele tenha se tornado um ícone da bondade numa época marcada por sofrimento, fome e seca. O musical Ceará Show, aliás, só mostra o Padre Cícero milagreiro, cuja figura foi (e continua sendo) importante para tanta gente. Mas é sempre interessante perceber que, por trás das lendas, há pessoas complexas, com defeitos e qualidades.

Lendas do Ceará: o espetáculo Ceará Show

O Ceará Show está permanentemente em cartaz de quinta a domingo num teatro no Meireles, em Fortaleza. Os ingressos podem ser comprados pela internet e custam a partir de 70 reais a inteira. Além dos personagens citados nesse texto, há outros que aparecem na peça, como Patativa do Assaré e Seu Lunga. E a história do Ceará ainda tem inúmeras figuras que merecem o seu Google, como Antônio Conselheiro, Bezerra de Menezes, Rachel de Queiroz e Maria da Penha.

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Otávio Cohen

Cresci lendo muitos livros e assistindo a muitos filmes. Deu nisso: hoje vivo de contar histórias. Por coincidência, algumas das melhores acontecem longe de casa. Por isso, de vez em quando, supero o medo de avião e a saudade do meu cachorro para ir em busca de uma nova história.

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