Histórias ao redor do forno a lenha: uma páscoa em Portugal

“Ôpa! Por que a menina quer saber disso tudo? Ano que vem, será ela a fazer o almoço da Páscoa?”

Mesmo muito desconfiados, aquela família portuguesa que vive numa aldeia no extremo norte do país estava bastante empolgada em responder as minhas curiosidades sobre suas tradições. Eu nunca havia dado atenção à Páscoa em Portugal – e acabei descobrindo que a data é quase tão importante quanto o Natal.

“Preparamos, todos os anos, o carneiro no forno, pato e arroz. Assim como no Natal, comemos bacalhau com batata e couves”. Todos os anos, toda Páscoa, sem exceção. Até as crianças, que tinham vindo de Lisboa, estavam na expectativa de comer o tal arroz.

Meus anfitriões eram o senhor Cândido e a dona Cinda, um casal que se juntou depois de idosos. São primos da minha amiga brasileira, a Bia, filha de pai português. Ambos têm filhos adultos, dos casamentos anteriores, e netos. Inclusive, mantêm duas casas.

Mas a aldeia já não é a mesma. Pelo caminho, a Bia me mostrava aquelas que eram as casas de algum familiar, as que estavam abandonadas, e as enormes, que ficavam fechadas o ano todo e eram de propriedade de quem foi fazer a vida em outro país.

Uma volta pela quinta e já vimos os perus, galinhas e patos, as ovelhas, as vinhas e os pés de couve. A água vem do poço, que vem de uma fonte mineral mais acima.

No sábado, ao meio dia e meia, pontualmente, já estava na mesa uma enorme panela com carne de vaca e de porco cozidas, couve, batatas e cenouras. E claro, as garrafas de vinho, sem rótulo. O Miguel, filho da Cinda, foi rápido em me oferecer o vinho verde branco, que veio de Monção. Mas também me serviram o vinhão, vinho verde tinto, que nessa região não se bebe em taças e sim na malga –  uma tigela branca sem alças.

Leia também: As principais comidas típicas portuguesas
Vinhos de Portugal: conheça os tipos e as regiões que são produzidos

Se vinho verde tinto ou branco deu nó na sua cabeça, entenda que vinho verde tem esse nome por causa do tipo da uva e das características típicas da região onde é produzido. Em geral, são vinhos novos, que não envelhecem muito tempo.

Miguel me contou que eles consomem todo o vinho que produzem – cerca de 1500 litros no ano. O grande lagar de pedra para amassar a uva fica logo atrás da espécie de barracão, também de pedra, onde está a cozinha com fogão de lenha e a grande mesa para as refeições.

Na hora da janta, pontualmente às 19h30, não estavam à mesa os restos do almoço, mas um tacho enorme com fígado refogado. E um prato menor, com uma carne branca com aspecto e textura um pouco diferentes. Se recusaram a me contar o que era até que eu provasse. Era testículo de carneiro!

Toda a comida no dia anterior foi só um prelúdio para a grande estrela do feriado. Eles acordam cedo na manhã do domingo de Páscoa. Juntam a lenha e acendem o forno, muito quente, com labaredas saindo pela portinha. A cozinha de pedras torna-se uma sauna difícil de respirar. O carneiro já estava marinando desde a véspera, com vinho, alho e outros temperos.

Por volta de 11h, me chamaram para o grande evento. Na cozinha já estava abafada e ainda tivemos que fechar a porta para garantir que o calor se conservasse. Enquanto o Cândido tirava todas as brasas do forno, a dona Cinda colocava pacotes e mais pacotes de arroz numa vasilha de cerâmica. “Agora, coloco o caldo do pato que estava ali cozinhando”- me explicou ela. “E vou temperar o pato para depois ele ir ao forno”.

Eles realmente me explicaram passo a passo. Primeiro, a tigela de mais de cinco quilos de arroz entra no forno. Acima dela, colocam a grelha e logo acima vieram os cortes do cordeiro temperado na véspera. Depois disso, veio o processo para fechar a portinha do forno. Quis saber o que era o balde com mistura estranha, que começava a ser espalhado na entrada: “É barro”.

O barro é colocado nos quatro cantos da abertura, onde depois vai uma porta de madeira, que é vedada com mais barro. Tudo para garantir que nenhum calor fuja de dentro das paredes do forno. “Antes usávamos esterco de vaca”, disse a Cinda. “E ficava bem mais gostoso” completou. “E por que pararam? Vigilância sanitária?” perguntei brincando. “Não, é que não temos mais vacas para produzir esterco”.

O Cândido também me explicou que como aquele cordeiro era maior ficaria cerca de uma hora no forno. Então abririam o fogão, retirariam o arroz já pronto, e colocariam os patos com o carneiro para mais meia hora de cozimento até a hora do almoço.

Num barracão da casa vizinha, de familiares, montaram uma mesa enorme. Todos já estavam reunidos enquanto o pato era retalhado e o carneiro cortado. Havia comida ali para um batalhão, mas éramos 20 pessoas. Sobrou mais da metade de tudo e olha que eu enchi meu prato três vezes, além de tomar muito mais vinho do que seria aconselhável.

Quando voltamos para casa, o portão já estava fechado. É que dessa vez não pretendiam abrir para o padre. Ao fim de tanta comilança, ainda faz parte da tradição da Páscoa, no norte de Portugal, a cerimônia do Beija Cruz, também chamada de o Compasso.

A Bia me disse que, antigamente, todas as casas abriam suas portas, com mesas fartas, para receber o padre, a cruz e sua comitiva. Depois, seguiam eles e a família para a casa seguinte, formando uma procissão. Mas a tradição já não é a mesma. Muitas casas, como a que eu estava visitando, não abrem mais as portas. Um sinal da mudança dos tempos. Felizmente, o cordeiro assado ainda segue presente.

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Luiza Antunes

Luiza Antunes é jornalista e escritora de viagens. É autora de mais de 800 artigos e reportagens sobre Viagem e Turismo. Estudou sobre Turismo Sustentável num Mestrado em Inovação Social em Portugal Atualmente mora na Inglaterra, quando não está viajando. Já teve casa nos Estados Unidos, Índia, Portugal e Alemanha, e já visitou mais de 50 países pelo mundo afora. Siga minhas viagens em @afluiza no Instagram.

Ver Comentários

  • Luiza, bom dia! Me chamo Camila e já te acompanho por um tempo pelo Instagram. Eu e minha família, esposo e dois filhos pequenos, estamos a dois anos com um anceio de morar em Portugal, já pesquisei muita coisa pela internet mas não e o suficiente, ele hj e empregado na empresa rede globo e eu sou cabeleireira, estamos pensando de ir no mês de janeiro para nós estabilizar, gostaria de saber sugestões suas com a sua bagagem de experiência. Oque fazer, quais passos dar para ida.

    Obrigada pela atenção!
    Lhe aguardo...

    • Oi Rosie,

      Nós não comemos borrego ou cordeiro nesse dia. Todos foram muito explícitos em me explicar que comeríamos carneiro, que é o animal adulto. Segundo o sr. Cândido me explicou, com a forma que eles fizeram a carne, o borrego simplesmente derreteria com o forno tão quente. E realmente, quando eu comi borrego assado - em outra ocasião tradicional - foi assado lentamente no forno

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Luiza Antunes

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