Não havia negociação. Enquanto houvesse pequi no congelador, ele fazia parte de todas as refeições em família: estava na carne, no frango e no arroz. Por algum tempo, minha avó tentava separar “a comida dos meninos” e fazia porções menores em outra panela, para a alegria dos netos, mas não tinha muito jeito. O pequi é daqueles alimentos que não se contentam como coadjuvantes na refeição. O fruto amarelo de cheiro forte impregna seu gosto marcante por onde quer que passe. Não poupa nem mesmo os outros alimentos que dividem espaço com ele na geladeira. Uma refeição com pequi é uma refeição de pequi. E é parte inerente da experiência de crescer no cerrado.
Em minhas várias incursões a Brasília de Minas na infância, tive que conviver, a contragosto, com uma fartura imensa de pequi. A pequena cidade no norte de Minas, na qual minha mãe cresceu, está situada na região com clima ideal para o cultivo dos pequizeiros e nutre pelo fruto uma paixão quase unânime, juntando-se assim ao time do estado de Goiás e de partes do Nordeste.
Leia também: Lembranças do Norte de Minas
Do pequi, aproveita-se tudo: da casta à semente. Foto: Shutterstock, por Jaboticaba Fotos
Em geral preparado cozido, o pequi pode ser servido puro, como o acompanhamento de alguma refeição, ou como ingrediente de outros pratos, como a galinhada. O fruto é de cor verde e, quando maduro, retira-se dele o caroço, esse sim revestido pela polpa amarela e carnuda que conhecemos.
Durante a temporada, que vai de novembro a março, a fruta é responsável pelo sustento de diversas famílias da região produtora. A cidade de Japonvar, limítrofe com Brasília de Minas, orgulha-se de ser reconhecida como a “Capital Mundial do Pequi”. Isso porque, de acordo com a Cooperjap (Cooperativa dos produtores rurais e catadores de pequi), o solo e o clima da região são excelentes para a produção de frutos de qualidade superior em termos de polpa, textura, coloração e sabor. Estima-se que cerca de 250 famílias e 30 organizações de produtores locais se beneficiem do processo de plantação, colheita e fabricação de produtos derivados do pequi. Além da polpa e do caroço em conserva, comercializa óleo, creme, farinha, paçoca de pequi com carne de sol e castanha desidratada do fruto.
Longe das raízes do cerrado, na capital mineira a fruta ainda não é tão popular, mas vai aos poucos cavando seu espaço. Alguns amigos meus não conhecem nem o cheiro. Ainda assim, durante a temporada, é fácil encontrar carros e mais carros abarrotados de pequi nas estradas próximas à capital e, no Mercado Central, a polpa em conserva é vendida durante o ano inteiro, assim como o licor e o óleo extraído dela. Sorvetes e picolés de pequi também são bastante comuns em lojas como a Frutos do Cerrado e Frutos do Brasil, experimentando um uso adocicado que se contrapõe às receitas mais tradicionais.
Arroz com pequi é um dos pratos típicos de Goiás e do norte de Minas. Foto: Shutterstock, por Fernando_Moreno
A possibilidade de consumir o fruto em conserva tornou mais fácil sua venda longe dos polos produtores e durante todo o ano. Por isso, o pequi vive um momento de glória. Batizado em homenagem à planta, o restaurante Pequi, localizado no bairro de Vila Santa Clara, em São Paulo, trata de apresentar o sabor marcante de Goiás e do norte de Minas aos paulistanos. Em outras casas, chefs que pretendem explorar sabores repletos de brasilidade provam receitas de risotos, massas e até hambúrgueres com pequi. E parte da safra anual deixa o semi-árido brasileiro rumo à gringa: o fruto em conserva já pode ser encontrado em mercados especializados nos Estados Unidos, Espanha, Portugal, Inglaterra, Alemanha e Irlanda.
Altamente nutritivo, o pequi contém mais vitamina C que a laranja, além das vitaminas A, E, carotenoides e gordura do bem, tem propriedades anti-inflamatórias e pode ser 100% aproveitado, da casca à semente. E quem conhece bem a fruta garante que ele também tem efeitos afrodisíacos. O pequi é o viagra do sertão.
Mas apesar de todo esse vigor e de seus admiradores fiéis, é preciso alertar: o pequi não é para iniciantes, não apenas porque não é qualquer paladar que aceita seu sabor único e marcante, mas porque o próprio processo de cair de boca no pequi é, digamos, espinhoso. Em 2001, o então senador Roberto Saturnino Braga (PSB-RJ) virou notícia nacional ao ser hospitalizado com os lábios completamente inchados depois de comer pequi sem parcimônia em Pirenópolis (GO). Erro comum de principiante: quem cresceu por aquelas bandas sabe que o pequi não deve nunca ser mordido, mas roído com cuidado, observando a curta distância entre os espinhos e a boca.
O pequizeiro é nativo do cerrado brasileiro. Foto: Shuttestock, por BRUNO LACERDA ROCHA
O incidente também poderia ser evitado se soubéssemos falar tupi: na língua indígena, pequi quer dizer casca espinhenta. É que o caroço do pequi é coberto com centenas de microespinhos que podem perfurar os lábios, língua e céu da boca de comensais com pouca habilidade, e podem penetrar em grande quantidade e tão fundo que, para retirá-los, só com a ajuda de profissionais da saúde. Segundo o professor da Universidade Estadual de Campinas, Oscar Ferreira de Lima, contou para à Piauí, “é possível dizer que há dezenas de espinhos em cada milímetro quadrado de pequi”.
Comumente encontrado livre na natureza, a coleta do pequi se dá, há séculos, de forma irrestrita: embora hoje a plantação comercial esteja em alta, em muitos lugares ainda basta entrar no mato e coletar o pequi: “Deus deixou essa árvore para dar esse fruto para ninguém morrer de fome”, diz o extrator cearense Aparecido José da Silva para o Globo Rural. Para os indígenas que habitavam o semi-árido, aliás, os pequizeiros sempre foram uma importante fonte de alimento, a ponto de serem considerados um presente divino:
“Das tuas lágrimas nascerá uma planta que se transformará numa árvore copada. Ela dará flores cheirosas que os veados, as capivaras e os lobos virão comer nas noites de luar. Depois, nascerão frutos. Dentro da casca verde, os frutos serão dourados como os cabelos de Uadi. Mas a semente será cheia de espinhos, como os espinhos da dor de teu coração de mãe. Seu aroma será tão tentador e inesquecível que aquele que provar do fruto e gostar, amá-lo-á para jamais o esquecer. Nenhum sabor o substituirá. Ele há de dourar todos os alimentos com que se misturar e, na mesa em que estiver, seu odor predominará sobre todos”
Piauí, No paraíso não havia pequi
Cresci sendo um pouquinho cerrado, um pouquinho metrópole, e, por isso desenvolvi uma relação ambígua com o pequi. Nunca tendo de fato comido um fruto inteiro e não sendo a maior fã do gosto e da textura, me acostumei com seu rastro. Uma espécie de relacionamento abusivo com uma fruta que eu amo odiar, mas que talvez eu não odeie tanto assim. É que lá no fundo do gostinho que ele deixa no arroz, tem também aquele sabor de comidinha de avô, de memórias, de afeto e de infância.
Clube Grandes Viajantes
Assine uma newsletter exclusiva e que te leva numa viagem pelo mundo.
É a Grandes Viajantes! Você receberá na sua caixa de email uma série de textos únicos sobre turismo, enviados todo mês.
São reportagens aprofundadas, contos, crônicas e outros textos sobre lugares incríveis. Aquele tipo de conteúdo que você só encontra no 360 – e que agora estará disponível apenas para nossos assinantes.
Quer viajar com a gente? Então entre pro clube!
Li a matéria inteira, falando da história, origem do nome, detalhes como “o gosto impregna em tudo”, etc… mas não tem a principal informação que queria saber, qual é efetivamente o gosto do pequi… é parecido com o que? uma mistura será entre vários gostos? não sei se o gosto que ele deixa é parecido com Curry ou com um suco de laranja… não adiantou nada ler a matéria toda…
hahaha Cris, nem curry, nem suco de laranja! O gosto é único, bastante característico! é gosto de pequi! Não dá pra comparar com outras coisas, você tem que provar para saber 😉
Ei, Nath…
Compartilho contigo dessa relação tão próxima com o pequi. Nasci e cresci no interior de Minas, no Vale do Jequitinhonha. Por aqui, não é raro perceber essa relação de amor e ódio. Eu, particularmente, amo. E sempre que chega a época do fruto e estou longo, fico com o coração apertadinho de saudade. Recentemente, meu marido (que é do Rio de Janeiro) viu pequi pela primeira vez. Ao experimentar, entrou pro time de quem odeia. Acho que é preciso crescer comendo pequi para gostar (mas não é regra, né?).
Enfim, amamos encontrar seu texto, muito bem escrito e que nos despertou tantas boas memórias afetivas. Gratidão pela leitura leve!
Olá Mallê,
hahah meu pai que é de BH, provou pequi quando conheceu minha mãe e gostou. Não sei exatamente, acho que é coisa de paladar mesmo, mas crescer com o gostinho acho que ajuda a criar uma memória afetiva, né?
Obrigada pelo comentário, fico feliz que tenham gostado do texto!
abraços!
Conheci o pequi recentemente e adoraria se lessem o que escrevi a respeito dele no link do meu blog que está abaixo. Tem sempre uma coisinha a mais para aprender. Adorei sua matéria.
Olá Virgínia,
Obrigada pelo comentário!
Abraços!
Hmmm, senti até o gostinho com esse post, hahaha. Minha família é do norte de Minas e na casa da minha vó tinha pequi o ano inteirinho! Ainda bem que eu amo! Agora… sorvetes e picolés de pequi foi a primeira vez que eu ouvi falar! Adorei o post! Parabéns 😉
Cleide, sempre tem esses sorvetes nessas lojas de frutos brasileiros. Ainda não provei, mas vou testar um dia!
Abraços e obrigada por comentar!