Os sinos dobram porque têm algo a dizer

Se o parto era difícil, os sinos da Igreja do Rosário pediam orações. A cada toque, rezavam juntos familiares, amigos e vizinhos desse templo de Ouro Preto, que tem uma imagem dedicada à Nossa Senhora do Bom Parto. A partir do século 20, época de cesarianas, o toque do parto caiu em desuso, mas a linguagem dos sinos permanece viva nas cidades históricas. Em Minas, os sinos dobram porque ainda têm muito a dizer.

Se nas grandes cidades cada badalada indica apenas a proximidade da missa e raramente é feita por sinos, mas por um sistema de alto-falantes, no interior de Minas existem toques para as mais variadas situações. Há um jeito de badalar diferente para cada grande festa religiosa, seja o Natal, a Páscoa ou dias santos diversos.

Também há toques específicos para avisar de falecimentos ou para dizer que um irmão da ordem religiosa está gravemente doente. E as informações vêm em camadas: dependendo do toque é possível saber se quem morreu era homem, mulher, ainda criança e até se a pessoa ocupava cargos importantes no governo ou na igreja.

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Mariana

Em Mariana, cidade vizinha de Ouro Preto e a 120 quilômetros de BH, o toque fúnebre ainda é fundamental para a população. Quem garantiu isso foi Antonio Manuel Pacheco Filho, um dos sineiros consultados num relatório sobre o assunto, produzido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em 2009. O Seu Antônio dizia que os sinos ainda eram um meio de comunicação, mesmo na época da televisão, do rádio e do telefone – e ele nem chegou a pensar no WhatsApp. Se alguém morria, mas o fato deixava de ser divulgado pelos sinos, muita gente só ficava sabendo da notícia depois do enterro, garantiu ele.

Naquele ano, o Iphan percorreu nove cidades mineiras: Ouro Preto, Mariana, Congonhas, Catas Altas, Sabará, Diamantina, Serro, Tiradentes e São João del-Rei. É na última que a linguagem dos sinos está mais preservada – são pelo menos 30 sinos só no centro histórico. Também é só lá que o sineiro é um profissional regular nas igrejas, com carteira assinada e funções diárias.

Em São João, foram contados mais de 40 toques, “que compõem um conjunto muito mais numeroso e complexo se comparado às demais cidades consideradas no inventário. Além disso, em São João del-Rei, os toques têm estrutura bem determinada e, ainda que se permitam pequenas variações ou ornamentos em sua execução, a sua estrutura permanece perfeitamente reconhecível”, concluíram os pesquisadores do Iphan, que conversaram com sineiros e moradores de todas as cidades do estudo.

O resultado da pesquisa foi um dossiê sobre o toque dos sinos em Minas Gerais, que foi declarado Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil. Um dos objetivos é preservar a tradição, passada oralmente entre sineiros há séculos, muitas vezes de pai para filho, mas que está ameaçada pelas mudanças típicas do mundo moderno, além de problemas na preservação de sinos e das torres das igrejas, em especial em cidades como Sabará, Catas Altas e Congonhas.

Para começar a entender a linguagem dos sinos

Mesmo tendo nascido em Belo Horizonte e frequentando cidades históricas desde criança, eu só conheci a importância da linguagem dos sinos em 2008, durante uma viagem para Diamantina. Foi lá que conversei com dois sineiros, pai e filho, o Geraldo Ribeiro de Jesus, na época já aposentado, e o Erildo Nascimento de Jesus, que também é historiador. “A linguagem dos sinos é tão antiga quanto o sino. Não apenas as religiões cristãs, mas as religiões orientais também se utilizam dos sinos e inclusive dos gongos. O sino é o único instrumento que tem a sua utilidade voltada para o nome. Sino vem de sinal, de signos. Ele foi feito justamente para emitir sinais, para linguagem”, explicou ele.

Para entender a língua dos sinos, o primeiro passo é prestar atenção no ritmo, que é o que determina se um toque é festivo ou triste. Além disso, os toques podem ser feitos com o sino parado, como as pancadas, causadas por um badalo em ação num único sino; ou com o sino em movimento – esses são os chamados dobres, que podem fazer com que o sino gire completamente em torno de seu eixo.

No caso de um toque de missa, por exemplo, o número de pancadas indica quem irá celebrar a reunião. Se forem três pancadas, a missa é com o padre, sete são para o bispo, nove para o arcebispo e 14 (não muito comuns) são para missas com o Papa.

Achou complicado? Fica ainda mais, porque o dobre pode ser simples, quando o sino cai em direção ao lado em que está o badalo; ou duplo, quando ele cai pelo lado oposto, o que acaba gerando dois toques a cada movimentação. Já os repiques envolvem mais de dois sinos – na realidade, é comum que um toque envolva pelo menos três sinos simultaneamente. Para isso, os sineiros podem trabalhar em grupos, mas alguns são capazes de tocar vários sinos mesmo quando estão sozinhos. O sino pequeno, que é mais agudo, faz a marcação, o médio pergunta e o grande, que é mais grave, responde. “Essa explicação, que define a estrutura musical dos repiques, é de autoria dos próprios sineiros”, diz o dossiê do Iphan.

O mais interessante é que o estudo concluiu que muitos dos moradores das cidades históricas mineiras entendem não apenas o que cada toque quer dizer, mas conhecem a sonoridade dos sinos de cada igreja. As pessoas sabem qual sino está tocando. Isso pode parecer pouca coisa em cidades onde as igrejas estão distantes umas das outras, mas é algo inacreditável se você pensar em lugares como Ouro Preto e São João Del-Rei, que tem uma grande quantidade de templos num espaço pequeno.

São João del-Rei

São João del-Rei

E a linguagem dos sinos também tem sua importância não religiosa, para alertar os moradores que algo de anormal está ocorrendo. “Esse é o caso do toque de incêndio, que é o toque da emoção, do descompasso, de alguma coisa que está acontecendo de anormalidade na cidade. Ele não tem ritmo, ele é aflição. Todo mundo nota que alguma coisa está descompassada e não está de acordo com o cotidiano”, disse o Erildo.

Não é difícil achar moradores de Mariana que ainda se lembrem do dia 20 de janeiro de 1999. Foi nessa data que o sino da Igreja de São Francisco gritou. E disse “fogo!”. O incêndio era num templo vizinho, a Igreja de Nossa Senhora do Carmo, e ocorreu pela combinação de um curto-circuito e produtos químicos usados num processo de remoção de cupins. O responsável pelo toque de aviso foi o Seu Antônio, que deu um sinal de alerta marcante na história da cidade.

O que fazer em Mariana

Igrejas em Mariana

Todo sineiro é um artista

Em São João del-Rei, cidade com tradição musical, os sineiros se envolvem também nas bandas e orquestras. O sineiro aprende o ofício na infância e é comum que crianças corram de igreja em igreja em busca de chances de aprender as badaladas, principalmente em datas religiosas. Mas é preciso ser experiente para conseguir inovar.

“Você pode notar que a torre tem um espaço separado. Lá em cima existia uma certa liberdade de criação artística. O repique vem dos toques afros que estavam aqui embaixo. Não existe qualquer tipo de arte em que seu executor não deixe uma marca de sua personalidade nela”, explicou o Erildo Nascimento, enquanto apontava para as torres de uma igreja de Dimantina.

No século 18, quase todos os sineiros eram escravos, o que fez com que os toques dos sinos tivessem grande influência de ritmos africanos. Segundo o dossiê do Iphan, uma prova disso é que muitos dos nomes de toques que existem até hoje designam também ritmos de terreiros de candomblé e na capoeira. “Há referência de que capoeiras e escravos se escondiam nas torres das igrejas, onde ninguém ousava subir. Tanto hoje como outrora, os espaços das torres são espaços de liberdade”, diz o estudo.

linguagem dos sinos

Tiradentes

Outro estudioso que viu as marcas pessoais nos toques de cada sineiro foi Fábio César Montanheiro, que pesquisou o toque dos sinos em Ouro Preto. “Isso não significa que o toque mude de sineiro para sineiro: essas pequenas mudanças equivaleriam a diferentes sotaques de falantes de uma mesma língua ou, por tão sutis que são, às vozes de cada falante de uma mesma localidade”, explicou ele.

A criação de normas para os toques dos sinos ocorreu por conta dos excessos nessas liberdades artísticas, além da pressão de famílias ricas e poderosas, que exigiam que os toques fossem mais fortes quando algum dos seus membros falecia. Hoje, os sineiros mais jovens precisam se manter nas regras do idioma dos sinos – e não falta morador que reclame caso note que algo está muito moderninho. Os sineiros mais experientes e respeitados podem, pouco a pouco, deixar sua marca. No fim das contas, eles são os músicos mais mais ouvidos nessas cidades.

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Rafael Sette Câmara

Sou de Belo Horizonte e cursei Comunicação Social na UFMG. Jornalista, trabalhei em alguns dos principais veículos de comunicação do Brasil, como TV Globo e Editora Abril. Sou cofundador do site 360meridianos e aqui escrevo sobre viagem e turismo desde 2011. Pelo 360, organizei o projeto Origens BR, uma expedição por sítios arqueológicos brasileiros e que virou uma série de reportagens, vídeos no YouTube e também no Travel Box Brazil, canal de TV por assinatura. Dentro do projeto Grandes Viajantes, editei obras raras de literatura de viagem, incluindo livros de Machado de Assis, Mário de Andrade e Júlia Lopes de Almeida. Na literatura, você me encontra nas coletâneas "Micros, Uai" e "Micros-Beagá", da Editora Pangeia; "Crônicas da Quarentena", do Clube de Autores; e "Encontros", livro de crônicas do 360meridianos. Em 2023, publiquei meu primeiro romance, a obra "Dos que vão morrer, aos mortos", da Editora Urutau. Além do 360, também sou cofundador do Onde Comer e Beber, focado em gastronomia, e do Movimento BH a Pé, projeto cultural que organiza caminhadas literárias e lúdicas por Belo Horizonte.

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4 comentários sobre o texto “Os sinos dobram porque têm algo a dizer

  1. Boa noite, sou o André Vinícius Mendes Guia de Turismo em Diamantina e graças a Deus primeiramente e depois ao Erildo,senhor Geraldo que é o seu pai e não podendo esquecer também do companheiro Morette, que em minha infância trabalhando na Secretaria de Cultura e Turismo de Diamantina como office boy me ensinaram o que sei hoje a história e cultura de Diamantina a importância que um patrimônio tem como este minha cidade e tantas outras cidades. Hoje formado como Guka de Turismo Regional MG, Nacional America do Sul, deixo aqui meu comentário e agradecimentos a todos um grande abraços e alguém querendo vim a conhecer minha cidade estamos aqui de braços abertos meus contato do whatsapp 38 9 99354685 vivo.

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