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Atlas: Pequim, China

A Muralha da China e os perrengues que fotos não contam

Sempre sonhei com a Muralha da China, nunca achei que desejaria ter como ir embora dela. Ponto alto de qualquer roteiro pelo país mais populoso do mundo, a Muralha envolveu um grau elevado de expectativa e planejamento na viagem que fiz pelo país, em fevereiro passado.

Qual trecho dela, entre tantos possíveis, deveríamos visitar? Valia ir por conta própria, ou era melhor contratar uma agência? Até o melhor dia da viagem – o segundo em Pequim – foi pensado, e não faltou torcida por céu azul ou, quem sabe, que a neve do inverno chinês pintasse de branco uma das maravilhas do mundo.

Não deu neve, mas o céu estava naquele azulão para foto hiper saturada nenhuma botar defeito. De quebra fomos premiados com pouquíssima gente na muralha, quase um milagre se pensarmos que era Ano Novo chinês. Enquanto era preciso lutar por um lugar na Cidade Proibida, em Pequim, na muralha tinha tão pouca gente que dava para fotografar trechos inteiros sem ninguém por perto. E sem esforço no enquadramento.

muralha da china

Se o dia lindo foi sorte, a ausência de gente numa época em que tudo na China se resume a multidões foi a consequência de uma escolha acertada – evitamos Badaling, o trecho mais popular da Muralha e o queridinho de turistas chineses, e fomos até Mutianyu, que é lindão, bem conservado, bonito e esnobado por multidões. Ainda bem.

Tudo muito bom, tudo instagrameável, não fosse a muralha, bem, não fosse ela da China. É que a censura chinesa bloqueia o Instagram no país. Ou seja, para postar fotos de viagem em redes sociais não-chinesas você precisa esperar a viagem acabar ou então burlar a regra usando um VPN, o que decidimos não fazer.

Três voos depois e já em casa, fui lá eu postar a imagem da realização do sonho, que foi prontamente respondida por comentários diversos: “Que dia lindo!”, disse um amigo. “Que sonho”, escreveu outra. “A muralha estava assim mesmo, vazia?, observou uma terceira pessoa. A dúvida tinha sentido, já que qualquer foto envolve um recorte e só conta parte da história. E se a muralha estava mesmo daquele jeito, vazia estava também minha paciência ao final do passeio – culpa da agência de viagem escolhida.

A confusão começou assim que deixamos o hotel, num tour que envolvia apenas mais dois turistas, ambos da Indonésia. Foi aquele típico problema de tour João-sem-braço: te falam um valor na hora da compra, depois você descobre que a quantia não envolve os penduricalhos, que no caso eram o teleférico até o alto da muralha e uma propina, digo, comissão, paga pela agência a um restaurante do Subway, que deixaria a van ir até o estacionamento mais próximo da muralha, sem a necessidade de enfrentar fila. Uma prova de que o tal jeitinho brasileiro também é chinês.

muralha da china

Não gostamos nada disso e optamos por não pagar o valor a mais – subimos a muralha na raça e nos degraus sem fim, para o desespero da guia, que primeiro insistiu que o teleférico era obrigatório (não era) e depois avisou, duas vezes, que largaria para trás quem não estivesse no ponto de encontro às 11h30. Fomos, nos esquecemos da discussão por duas horas e voltamos sem problemas e na hora marcada. Até que, no ponto de encontro, nada de guia, nada de motorista, nada de turistas da Indonésia. Ninguém.

Procura aqui, verifica carro por carro ali, pergunta para chineses acolá, mas, 50 minutos depois, começou a crescer o sentimento de que a guia tinha cumprido a promessa e, por pura pirraça, largado dois brasileiros pontuais para trás. E aí? Como voltar para Pequim? Quanto custaria uma corrida de táxi de duas horas para o hotel? E como pagar, já que nem tínhamos yuans suficientes para isso? Foi outro guia chinês, vendo o desespero que começava a se formar, que ligou para a agência e depois conseguiu localizar a guia, que estava alguns metros abaixo, naquela mesma lanchonete que tinha recebido a propina, digo, comissão.

“Estava frio e resolvemos esperar vocês aqui”, alegou ela, se esquecendo do tal ponto de encontro instituído horas antes. Mas o estresse já estava formado. Ela reclamou em chinês, nós em português, os indonésios ficaram calados e seguimos viagem para outra parte contestada do tour: visitar duas fábricas, de seda e jade. “Se não quiserem visitar esses lugares a gente segue viagem, mas vamos cobrar mais de vocês”, disse ela, dando a entender que caso não comprássemos nada nas visitas seguintes o tour não compensaria pra agência, que tinha feito quase que um favor de nos levar até a muralha – um favor que custou 60 dólares por pessoa. Deixamos a briga pra lá, mas não sem resmungos.

Conhecer a Muralha foi um momento mágico e inesquecível, mas foto nenhuma conta as letras miúdas, já que nas redes sociais tudo é perfeito e não há perrengues. Tipo a raiva que você sente ao perceber que foi feito de trouxa ou, pior ainda, o medo de terem te largado na Muralha da China. Ainda bem que não nevou.

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Rafael Sette Câmara

Sou de Belo Horizonte e cursei Comunicação Social na UFMG. Jornalista, trabalhei em alguns dos principais veículos de comunicação do Brasil, como TV Globo e Editora Abril. Sou cofundador do site 360meridianos e aqui escrevo sobre viagem e turismo desde 2011. Pelo 360, organizei o projeto Origens BR, uma expedição por sítios arqueológicos brasileiros e que virou uma série de reportagens, vídeos no YouTube e também no Travel Box Brazil, canal de TV por assinatura. Dentro do projeto Grandes Viajantes, editei obras raras de literatura de viagem, incluindo livros de Machado de Assis, Mário de Andrade e Júlia Lopes de Almeida. Na literatura, você me encontra nas coletâneas "Micros, Uai" e "Micros-Beagá", da Editora Pangeia; "Crônicas da Quarentena", do Clube de Autores; e "Encontros", livro de crônicas do 360meridianos. Em 2023, publiquei meu primeiro romance, a obra "Dos que vão morrer, aos mortos", da Editora Urutau. Além do 360, também sou cofundador do Onde Comer e Beber, focado em gastronomia, e do Movimento BH a Pé, projeto cultural que organiza caminhadas literárias e lúdicas por Belo Horizonte.

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32 comentários sobre o texto “A Muralha da China e os perrengues que fotos não contam

    1. Oi, Jonas. Eu realmente não me lembro.

      O mais importante é evitar tours que envolvam visitas a fábricas de qualquer tipo. Se for um tour privativo, sem outros viajantes, melhor. Vale o investimento.

  1. Oi Rafael! Muito bom o seu relato!! Realmente nas Redes Sociais só vemos glamour! E fotos não contam os perrengues vivenciados! Eu e meu esposo vamos para a Muralha da China em fevereiro de 2020, e estamos pensando em contratar uma agência. Poderia nos informar o nome da agência que você foi?

    1. A nossa foi contratada diretamente com o hotel, Franciele.

      Francamente, nem me lembro mais. 🙂

      O mais importante é garantir que não haverá paradas a mais, sem necessidade. Acho que vale investir num tour privativo também.

  2. Parabéns pelo relato. Excelente. É sempre bom ver pessoas de verdade, falando de coisas que acontecem de verdade seja bom ou ruim. Viagem tem sempre coisas boas e “derrotas”. Eu já fui enganado até por italianos rsrs. O turista está exposto, longe de casa e meio perdido. Enfim, bom que no final a experiência foi boa.

    1. Eu tava pensando nisso esses dias, Dean, porque fui pra uma cachoeira e choveu bastante. Fica a frustração, claro, mas parei pra pensar qual viagem que eu fiz que foi perfeita, sem problemas. Resposta: nunca ocorreu. Todas tiveram perrengues e coisas chatas, algumas mais, outras menos.

      E mesmo assim foram viagens inesquecíveis.

      Abraço e obrigado pelo comentário!

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