De trás dos portões do cemitério de Papantla de Olarte, no estado mexicano de Veracruz, uma figura vestida com uma longa túnica marrom e um capuz que ocultava parcialmente seu rosto fantasmagórico caminha de um lado para o outro antes de parar em frente à fechadura e escancarar a grade que separava o mundo dos mortos e o dos vivos. Ele mandou um aceno para a multidão que o observava em silêncio, do lado de fora do cemitério, e desapareceu entre as tumbas.
Instantes depois, uma procissão de personagens diversos com rostos pintados de caveiras atravessa o portão e segue impassível ladeira abaixo, em direção à principal praça da cidade. Alguns deles vestem roupas que remetem aos reis e rainhas pré-hispânicos. Outros usam as tradicionais vestes totonacas e, no caminho, reproduzem os passos das danças típicas de sua cultura. A passagem das caveiras do cemitério para o centro da cidade simboliza o momento em que os portões do paraíso se abrem, no dia 31 de outubro. Dali até o dia 2 de novembro, as almas que já não habitam este mundo são recebidas com alegria por seus parentes e amigos vivos.
Ao contrário do que muita gente acredita, o Dia dos Mortos tal como se comemora hoje não é uma celebração pré-hispânica. É resultado do sincretismo entre as religiões originárias e o cristianismo introduzido no país com a chegada dos conquistadores espanhóis. A forma de encarar a festa católica do Dia de Todos os Santos, no entanto, herdou muito da cosmovisão pré-colonial. A morte sempre ocupou um lugar importante no sistema de crenças dos povos mesoamericanos. Grande parte deles, em especial os que habitavam as regiões centrais e do sul do México, tinham em seus calendários meses inteiros dedicados a honrar seus antepassados e familiares mortos.
De acordo com Eusébio, guia de turismo da Zona Arqueológica do Tajín, antiga capital do mundo totonaco, morrer era transcender. Por isso ser sacrificado era um privilégio reservado a poucos. Hoje, a ideia de que o falecimento é o fim de um ciclo e o início do outro ainda se preserva entre os descendentes desses povos. “Aqui a morte é algo natural, é parte da vida. Por isso celebramos com uma festa”, conta Maria Cristina Guerrero, uma senhora de origem totonaca que viveu em Papantla toda a sua vida e se animava com a proximidade do Dia dos Mortos.
Na língua totonaca, a festa recebe o nome de Ninín. A palavra, que traduzida literalmente ao português quer dizer “não mortos”, representa bem a visão do que há depois das nossas vidas terrenas. Ninguém morre de verdade no México enquanto exista quem se importe com eles.
Além da cosmovisão, alguns dos costumes tradicionais da festa também foram herdados dos tempos pré-coloniais, como a preparação do altar de muertos, as oferendas e a simbologia por trás delas. A mesa, decorada com velas, papel de seda picado em formas diversas e flores coloridas, é preparada nos últimos dias de outubro e representa o portal que se abre entre os dois mundos. O tipo de oferta que se coloca nela varia de acordo com a região.
Em Totonacapan, que abrange o estado de Veracruz e a serra de Puebla, por exemplo, é comum que se oferte tamales – massa de milho recheada de carnes, queijo ou frutas -, abóbora em conserva, bolinhos de anis e frutas diversas. Já entre os raramuri, que habitam o norte do país, só se oferta aquilo que a natureza produz.
Outros costumes e crenças também variam ao longo do território mexicano. Há quem diga que os mortos se manifestam entre nós em forma de insetos, como abelhas e borboletas. Outros acreditam que eles vêm em forma de espíritos, invisíveis aos olhos humanos, mas sentidos com o coração, e que o ar se torna mais rarefeito esse dia, como se o nosso mundo se tornasse também um pouco menos material.
Algumas famílias levam comida para o cemitério e fazem uma grande festa junto às tumbas de seus parentes e amigos, com direito a música, tequila ou mezcal. Outras deixam a porta de casa aberta, convidando as almas de seus entes queridos. É comum também que se distribua “pan de muerto” – um pão doce coberto de açúcar – nas ruas.
Em Papantla, os três dias que correspondem ao Tiempo de Muertos foram comemorados com muita música, apresentações de dança e peças de teatro. Já na Cidade do México, esculturas de caveiras mexicanas foram colocadas ao longo do Paseo de la Reforma, avenida pela qual também passou um grande desfile de Catrinas.
Mais que um dia de culto à morte, a festa mexicana é uma forma de honrar o tempo que pessoas queridas passaram entre nós e de lembrarmos delas com alegria, porque para morrer é preciso existir. Como disse o escritor mexicano e prêmio Nobel de literatura Octavio Paz, “nosso culto à morte é um culto à vida”.
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