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Vigilantes do céu: como a falcoaria ajuda na segurança de aeroportos

Os olhos atentos de Maya vigiam o espaço aéreo do Aeroporto Internacional Tancredo Neves, na região metropolitana de Belo Horizonte. Treinada para afugentar e capturar aves que entrem numa região dominada por aviões, essa gavião-asa-de-telha é uma das cinco aves que fazem parte do Programa de Gerenciamento do Risco da Fauna do aeroporto. Também cumprem expediente por ali os machos Hórus e Hell e a fêmea Kira, além do Raul, um gavião-de-cauda-branca.

Os cinco animais de rapina são acompanhados de perto por três biólogos, um veterinário e dois técnicos da Bicho do Mato, empresa especializada na área. Essa é a equipe que traz a falcoaria – uma mistura de esporte, manifestação cultural e arte milenar – para a segurança do aeroporto mineiro.

Segundo a BH Airport, concessionária do aeroporto, desde a adoção da falcoaria houve uma queda acentuada no número de colisões com aves de grande porte e de danos às aeronaves – e em 2018 não houve registro de colisão que tenha resultado em danos. “Um dos maiores prejuízos que se tem na aviação é o da fauna, as colisões. Um animal dentro da área de operação pode até fechar um aeroporto”, diz Douglas Gameiro, Gestor de Qualidade, Segurança e Meio Ambiente na BH Airport. Ele explica que, até mesmo pela localização do aeroporto, no município de Confins, a gestão do risco fauna tem um contexto próprio.

Estamos num local mais isolado, então temos uma característica de fauna um pouco diferente. Aqui na região tem lobo-guará, já foi até avistada onça, alguns animais que não existem em grandes centros urbanos. Por outro lado, as grandes cidades têm outras pragas, como a pomba, aves que não temos aqui. E de acordo com o local você tem que se adaptar ao risco. O aeroporto de Congonhas, por exemplo, é totalmente diferente do nosso.

Douglas Gameiro – BH Airport.

Douglas afirma que existem outras formas de diminuir o risco, mas que a falcoaria é a melhor para o meio ambiente. “O trabalho não é só para capturar, mas principalmente para afugentar. Você tem um predador na região, o que faz com que os animais que estão na área de risco se afastem com medo dele.

falcoaria aeroportos

Aeroporto Internacional de Belo Horizonte (Confins)

Falcoaria, da antiguidade aos aeroportos

Não se sabe ao certo quando e nem onde surgiu a falcoaria, mas existem relatos que mostram que o treinamento de aves de rapina ocorre há milhares de anos. Desenhos em baixo relevo encontrados no antigo território da Assíria (800 a.C.) mostram um arqueiro e uma ave indo em busca de presas, enquanto registros chineses e japoneses de 600 a.C. descreviam a técnica.

Aristóteles também escreveu sobre o tema e, séculos mais tarde, Julio César tinha um exército de falcões treinados para capturar pombos-correio. Além da caça, da espionagem e da proteção de plantações, a falcoaria logo virou um esporte. A importância da técnica é tão grande que em 2010 ela foi declarada Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela Unesco, numa candidatura em conjunto que envolveu 14 países.

O treinamento da ave é trabalhoso. A primeira etapa é o amansamento, em que a ave aprende a ficar o maior tempo possível no punho (com luva) do treinador. Ali ela é ensinada a aceitar o toque humano. Vencida essa etapa, que é a mais longa, começam os voos controlados, de um poleiro para punho do falcoeiro, que recompensa a ave com um alimento. Todas as aves são condicionadas com o apito, que é o chamado do treinador.

falcoaria aeroportos

Aeroporto Internacional de Belo Horizonte (Confins)

A distância é gradativamente aumentada até que chega a hora do voo livre. Uma vez pronta, a ave é usada nas rondas dos aeroportos. O peso e a alimentação das aves são controlados diariamente, de forma a mantê-las saudáveis e prontas para o trabalho.

Em Confins, são realizadas duas rondas por dia, de manhã e de tarde, em toda a área operacional do aeroporto. Se os falcoeiros e técnicos avistam alguma ave, o falcão é lançado para afastá-la. Caso ocorra a captura, é realizada uma troca: o gavião recebe uma quantidade generosa de comida e entrega a ave capturada, que é então levada a veterinários e mais tarde liberada numa área a 20 quilômetros do aeroporto, designada por órgãos ambientais.

Hoje, alguns dos principais aeroportos do mundo usam a falcoaria para afugentar aves. A técnica está presente nos aeroportos Barajas, em Madrid, John F. Kennedy, em Nova York e Portela, em Lisboa, entre outros. No Brasil, o Aeroporto da Pampulha, em Belo Horizonte, é frequentemente apontado como o pioneiro no uso da falcoaria no país, que também é usada no Galeão, no Rio de Janeiro, e em Viracopos, em Campinas, só para citar alguns.

falcoaria

Aeroporto Internacional de Belo Horizonte (Confins)

No Aeroporto Internacional Tom Jobim, no Rio, a falcoaria foi implementada em 2015, junto com outras medidas do Programa de Gerenciamento de Risco da Fauna. Desde então, o número de colisões caiu 47%. “As aves de rapina são caçadoras naturais, com características que facilitam esse trabalho, como o bico curvo e afiado, garras fortes e poderosas, além de excelente visão e audição. O objetivo principal é afugentar e capturar aves como urubu, carcará e a garça branca, explica Milena Martorelli, gerente de sustentabilidade do RIOgaleão. Trinta aves e uma equipe de doze profissionais cuidam dos céus do aeroporto carioca, que conta ainda com dois cachorros que, assim como as aves, são treinados para identificar ninhos e outros animais. “Os cães fazem um sinal de aponte (levantam uma pata e esticam a cauda)”, explica ela.

A atuação da equipe é diária, das 6h às 22h, e segue as orientações da torre de controle. São realizadas também rondas em pontos estratégicos para localizar aves, ninhos ou qualquer coisa que possa servir de alimento e acabar atraindo mais animais.

A ação desses falcões e gaviões especialmente adestrados visa afugentar e capturar outros pássaros que possam ameaçar a operação do aeroporto, sem matar os animais. As aves capturadas passam por exames e cuidados veterinários. As informações são catalogadas e repassadas às autoridades responsáveis. Após esse processo, o pássaro capturado é solto no Parque Natural de Gericinó.

Milena Martorelli, gerente de sustentabilidade do RIOgaleão

 

O risco fauna e os bird strikes

Quando sobrevoava as plantações de milho nos arredores de Fairborn, uma cidade do estado norte-americano de Ohio, Oliver Wright escreveu mais um dos capítulos iniciais da aviação: a primeira colisão com uma ave, ou bird strike. Ele descreveu o acontecimento em seu diário, no dia 7 de setembro de 1905:

“Voou 4.751 metros em 4 minutos e 45 segundos, quatro círculos completos. Duas vezes passou no campo de milho do Beard, perseguido um bando de pássaros. Matou um, que caiu em cima da superfície superior (da aeronave) e depois de um tempo caiu, ao balançar numa curva acentuada.”

Diário de Oliver Wright

Começava ali a necessidade de controlar o chamado risco de fauna, que hoje é o incidente mais comum na aviação mundial. Segundo o Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa), colisões com animais geram um custo anual de três bilhões de dólares mundialmente. No Brasil, um relatório do Cenipa indicou que o prejuízo com os bird strikes, em 2016, foi de 200 milhões de dólares. Embora na maioria esmagadora dos casos o avião não sofra danos, a aeronave pode ter que retornar ao aeroporto e passar por testes rigorosos antes de voltar a voar.

Desde que os primeiros aviões começaram a cortar os céus, no início do século 20, estima-se que 470 pessoas tenham morrido em acidentes após o choque de aeronaves com aves. O mais grave foi em 1960, no voo Eastern Air Lines 375, que ia de Boston para Atlanta, nos Estados Unidos. Seis segundos após a decolagem o avião se chocou com estorninhos, aves que têm cerca de 15 centímetros e pesam no máximo 100 gramas, mas que costumam voar em grandes bandos. O avião caiu na baía de Boston e 62 das 72 pessoas a bordo morreram. Restos de pássaros foram encontrados dentro dos motores da aeronave. Além do risco de trombar com uma ave de grande porte, esse acidente mostrou que colisões com bandos de pássaros pequenos podem ser perigosas não apenas para os animais.

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O acidente com o Eastern Air Lines 375 mudou a aviação e fez com que o risco aviário fosse estudado. A partir dali, os aviões foram preparados para suportar esse tipo de problema. Em novembro de 1973, um avião comercial que sobrevoava a Costa do Marfim se chocou com um abutre africano a 11.278 metros de altitude, estabelecendo dois recordes de uma só vez: o voo mais alto de uma ave já avistado e a colisão em altitude mais elevada. A ave foi sugada pelo motor do avião, que pousou em segurança pouco depois.

Mas a mais famosa colisão de aviões com aves é mesmo a do voo US Airways 1549, que seguia de Nova York para Charlotte, também nos Estados Unidos, em janeiro de 2009. Logo após a decolagem, o Airbus A320 se chocou com um grande grupo de gansos migratórios vindos do Canadá, aves que têm até um metro de comprimento e que pesam quase sete quilos. Mesmo com a perda dos dois motores o avião pousou no rio Hudson e todas as 155 pessoas a bordo foram resgatadas em segurança. Em 2016, essa história inspirou a realização do filme “Sully”.

aeroporto de confins

Aeroporto Internacional de Belo Horizonte

Quase 90% dos incidentes ocorrem a menos de mil metros do solo. Segundo o Cenipa, 75% das colisões com aves no Brasil acontecem a até 500 pés (150 metros do solo), o que reforça a importância da falcoaria para evitar que esses animais entrem na rota de pousos e decolagens.

Desde 2014, quando foram publicadas as regras do Regulamento Brasileiro da Aviação Civil 164, passou a ser obrigatório comunicar ao Cenipa qualquer ocorrência envolvendo animais. Num primeiro momento a medida aumentou o número de registros, já que vários incidentes simplesmente não eram informados, mas o número começou a cair nos anos seguintes.

E embora as colisões com aves sejam os casos mais comuns, o risco de fauna inclui também incidentes envolvendo outros animais. Na Austrália, em 2015, um avião fretado se chocou com um pequeno canguru durante o pouso, que foi finalizado em segurança. E não são raros os casos de aeroportos que precisam ser fechados por conta de cachorros soltos na pista, como já ocorreu em Congonhas. Para casos como esse, todo aeroporto mantém uma equipe de prontidão, que avisa assim que avista o invasor.

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Rafael Sette Câmara

Sou de Belo Horizonte e cursei Comunicação Social na UFMG. Jornalista, trabalhei em alguns dos principais veículos de comunicação do Brasil, como TV Globo e Editora Abril. Sou cofundador do site 360meridianos e aqui escrevo sobre viagem e turismo desde 2011. Pelo 360, organizei o projeto Origens BR, uma expedição por sítios arqueológicos brasileiros e que virou uma série de reportagens, vídeos no YouTube e também no Travel Box Brazil, canal de TV por assinatura. Dentro do projeto Grandes Viajantes, editei obras raras de literatura de viagem, incluindo livros de Machado de Assis, Mário de Andrade e Júlia Lopes de Almeida. Na literatura, você me encontra nas coletâneas "Micros, Uai" e "Micros-Beagá", da Editora Pangeia; "Crônicas da Quarentena", do Clube de Autores; e "Encontros", livro de crônicas do 360meridianos. Em 2023, publiquei meu primeiro romance, a obra "Dos que vão morrer, aos mortos", da Editora Urutau. Além do 360, também sou cofundador do Onde Comer e Beber, focado em gastronomia, e do Movimento BH a Pé, projeto cultural que organiza caminhadas literárias e lúdicas por Belo Horizonte.

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