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Atlas: Macau, China

Como o português está renascendo em Macau


Com um pastel de nata na mão, vi um grande dragão amarelo descer pelas escadarias de uma construção tipicamente portuguesa. Eu tinha desembarcado em Macau em pleno Ano-Novo Chinês. Uma multidão, em sua maioria formada por turistas da China continental, lutava pelo melhor lugar para assistir a cerimônia que tomava conta das Ruínas de São Paulo.

Se a festividade e as pessoas deixavam claro que estávamos na Ásia, as placas informativas, a arquitetura dos prédios, a calçada portuguesa e até os avisos sonoros do transporte público criavam um gostinho de casa. Em Macau, o português é língua oficial, uma marca dos séculos de presença lusitana na região. Prédios, como o da Santa Casa da Misericórdia e o do Edifício do Leal Senado, dividem espaço com igrejas, lojas e restaurantes com nomes em português.

Foi num desses que paramos para almoçar, um pequeno estabelecimento chamado Loja de Sopa de Fita, localizado na não menos simpática Rua da Felicidade – tudo assim mesmo, em bom português. Dividindo a mesa com dois chineses e lutando para desvendar o que dizia cardápio, pedimos ajuda para uma mulher que andava de lá para cá, tomando conta do estabelecimento. A resposta veio, mas em inglês, levantando uma suspeita da qual há muito eu tinha ouvido falar – o macauense mais jovem anda por ruas cujos nomes lembram Lisboa, come pastel de nata e bacalhoada, mas poucos são os que falam a língua de Camões.

português em Macau

Por falar nele, apenas 450 metros separam as Ruínas de São Paulo do Jardim de Camões, um parque no meio do centro histórico de Macau. Segundo contam algumas versões, Luís de Camões teria vivido parte de seu desterro ali – e escrito sua maior obra, Os Lusíadas, numa gruta dentro da área que hoje leva o nome do poeta.

Ao regressar para Lisboa, em 1569, Camões teria dito que levava sua herança para todos os portugueses. Ainda segundo essas histórias, na viagem de retorno um naufrágio no Rio Mekong teria feito Camões escolher entre os manuscritos de Os Lusíadas, que boiavam nas águas, e sua namorada, uma chinesa que fazia a viagem de retorno com ele e pedia ajuda desesperadamente.

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Os Lusíadas chegaram ao século 21, a mulher virou lenda. Mas é bem provável que boa parte dessas histórias sejam só isso mesmo. Não faltam pesquisadores que garantam que o escritor nunca passou por ali e até que Macau nem existia naquela época. Em todo caso, a Gruta de Camões permanece de pé, mais um testemunho da importância da língua portuguesa nessa parte da Ásia. Tenha o escritor vivido ali ou não.

A vida entre o português e o cantonês

Se para o turista de países lusofalantes a presença da língua portuguesa é só uma curiosidade, para imigrantes desses países que resolvem viver em Macau a questão do idioma vai além. “Quando eu cheguei, senti que estava num lugar familiar. E o fato de ter uma presença portuguesa enorme é muito importante para você se sentir mais à vontade”, explica Lucas Calixto Teixeira Pereira, um brasileiro que há três anos e meio se mudou para Macau.

Convidado por um tio que é professor de português na Universidade de Macau, Lucas aceitou o desafio. Hoje, estuda Comunicação na mesma universidade e joga futebol no Chao Pak Kei, um time da primeira divisão local. Também dá aulas do esporte para crianças da primeira categoria, que têm entre três e cinco anos. “A maioria dos alunos não fala português, só um ou outro que sabe, e muitos também não sabem inglês. Então eu tive que me virar para aprender as palavras-chave para dar aula, tipo levanta, abaixa, senta, corre, chuta, vai beber água e volta”.

Quando o idioma é um obstáculo, Lucas mostra para os alunos como fazer algo e pergunta se eles entenderam. A comunicação é um desafio também fora das aulas, mesmo com o português sendo uma das línguas oficiais de Macau e que até as ruas tenham nomes no idioma.

“Entre chineses, você fala a língua portuguesa só com pessoas mais velhas, de 50 a 60 anos pra cima. Nas gerações mais novas são pouquíssimos os que falam português, eles estão optando por aprender inglês. Os mais novos ou não tiveram contato com o idioma ou até sim, na escola, mas não foi suficiente para passar do ‘Olá, tudo bem?’.”

É justamente a diversidade a parte da vida em Macau que Lucas mais gosta. Ele conta que tem amigos da Europa, da África, das Américas e, claro, da Ásia. Fala muito português no dia a dia porque convive com vários imigrantes de países lusofalantes.”O português é para os portugueses, para os brasileiros e os africanos, é a outra metade é o povo chinês. Existe esse abismo entre as duas culturas, as duas línguas”, conta.

Macau e Portugall

Português em Macau: de língua franca da Ásia ao ensino em escolas chinesas

Última colônia europeia na Ásia, Macau foi parte de Portugal até 1999, quando foi devolvida para a China. A vizinha Hong Kong, antiga colônia britânica, fez o mesmo caminho em 1997. No acordo diplomático costurado entre europeus e asiáticos, Macau e Hong Kong ganharam condições especiais e foram declaradas Regiões Autônomas da China. .

Sob o lema “Um país, dois sistemas”, Macau permanecerá, até 2049, com liberdades que não são vistas na China continental. Tem imprensa livre, controle de fronteiras e moeda própria, a Pataca de Macau, embora o Dólar de Hong Kong também seja onipresente por ali. Apesar do uso do português ser limitado a certas camadas da população de 600 mil habitantes, isso não impede que existam jornais e sites jornalísticos focados no público que fala português, como o Hoje Macau e a Tribuna de Macau, e até um canal de televisão no idioma.

“O português, quando virou língua oficial da Região Autônoma de Macau, continuou sendo um idioma ligado a pequenos grupos: imigrantes portugueses, brasileiros ou de outros países que falam a língua”, explica Edleise Mendes, Professora do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia. Mas ela garante que a situação está mudando e que o português está, aos poucos, renascendo na China.

A pesquisadora, que trabalha há 25 anos com o ensino de português como segunda língua, esteve oito vezes em Macau. Ela destaca que o número de cursos de português na China triplicou em uma década, não apenas em Macau, mas também no continente. Ainda segundo ela, hoje existem quatro centros de formação de professores de português apenas em Macau.

“A partir de Macau, formam-se professores que atuam não somente ali, mas que também se espalham pela China continental. Macau, para a China, tem sido um ponto estratégico para a difusão do português. Hoje já é possível ouvir mais o português no cotidiano, seja no comércio, seja através de professores jovens, uma imigração forte de comunidades lusofalantes. O português tem conseguido, nos últimos anos, ter uma certa vivacidade e uma carreira promissora. Há uma tendência de crescimento”.

O português chegou na Ásia durante as Grandes Navegações. Além de Macau, Goa, Damão e Diu, na Índia, Malaca, no que hoje é a Malásia, e os territórios que atualmente são da Indonésia e do Timor Leste também viram o português criar raízes. Em cada porto onde os europeus fincavam bandeira, a língua crescia. “Essa circulação de mercadorias fazia com que o idioma também circulasse, e o português se tornou uma língua do comércio. Tanto é que o idioma teve alguma existência em cantos diferentes do mundo”, explica Edleise Mendes.

Nessa época, o português chegou a ser uma espécie de língua franca da Ásia. Foi também nesse período que Macau ganhou seu “Leal Senado”, um reconhecimento do Rei de Portugal pela lealdade da população – esse foi o único território colonial português que nunca viu uma bandeira espanhola ser içada. E foi a partir dali, na Cidade do Santo Nome de Deus de Macau, que Portugal exerceu boa parte de seu poder no restante do continente.

Hoje, o português é idioma oficial em nove países e uma região, territórios espalhados por quatro continentes. Existem cerca de 250 milhões de nativos da língua no mundo. Cerca de 80% deles estão no Brasil, mas outros 60 milhões se espalham entre Moçambique, Angola e, claro, Portugal. Para a pesquisadora, a explicação para o aumento do ensino do português na China está justamente nesses países. E o comércio tem, mais uma vez, seu papel.

“O que alavanca esse interesse por parte da China é a possibilidade de expansão das relações econômicas e comerciais com os países lusofalantes, como o Brasil, mas também Angola e Moçambique. Isso cria alternativas para a China que são um contraponto com outros eixos de produção comercial, como Estados Unidos e Europa.”

Patuá, quando o português se encontra com a Ásia

Uma mistura de idiomas que vai da Malásia à China. O patuá é uma língua baseada no português que se tornou comum a partir do século 16, principalmente nas cidades que serviam de portos para os portugueses, como a própria Macau e também Malaca, na Malásia. Por ter forte influência chinesa, era mais facilmente aprendida pela população local, que passou a usar o Patuá na comunicação, inclusive com os portugueses.

A partir do século 19, Portugal realizou reformas educacionais para que o português se tornasse a língua padrão de todas as colônias do Império. Primeiro foram as classes sociais mais destacadas que abandonaram o patuá, chamado por seus falantes de maquista, mas logo a tendência foi seguida em todos os territórios coloniais.

Se para o português ocorreu um renascimento, a devolução de Macau para a China trouxe novos desafios para o patuá, assim como a vocação da área para o entretenimento. Hoje, 80% da economia de Macau é movimentada por cassinos e mais dinheiro de jogo circula por ali do que na norte-americana Las Vegas. Os cassinos trouxeram réplicas de cartões-postais mundiais, como a Torre Eiffel, e os turistas chegaram aos milhões, principalmente da China continental. Atualmente mais de 90% da população de Macau é de origem chinesa e a cultura macanesa – incluindo o patuá – é cada vez mais rara.

Em 2009, a Unesco colocou o Patuá numa lista de idiomas ameaçados de forma crítica. Em 2000, um censo indicou que apenas 50 pessoas ainda falavam o patuá no mundo. A maioria vive em Macau e já tem idade avançada.

Imagem destacada: Por CHEN MIN CHUN – ID da foto stock livre de direitos: 1122364136 / Shutterstock.com

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Rafael Sette Câmara

Sou de Belo Horizonte e cursei Comunicação Social na UFMG. Jornalista, trabalhei em alguns dos principais veículos de comunicação do Brasil, como TV Globo e Editora Abril. Sou cofundador do site 360meridianos e aqui escrevo sobre viagem e turismo desde 2011. Pelo 360, organizei o projeto Origens BR, uma expedição por sítios arqueológicos brasileiros e que virou uma série de reportagens, vídeos no YouTube e também no Travel Box Brazil, canal de TV por assinatura. Dentro do projeto Grandes Viajantes, editei obras raras de literatura de viagem, incluindo livros de Machado de Assis, Mário de Andrade e Júlia Lopes de Almeida. Na literatura, você me encontra nas coletâneas "Micros, Uai" e "Micros-Beagá", da Editora Pangeia; "Crônicas da Quarentena", do Clube de Autores; e "Encontros", livro de crônicas do 360meridianos. Em 2023, publiquei meu primeiro romance, a obra "Dos que vão morrer, aos mortos", da Editora Urutau. Além do 360, também sou cofundador do Onde Comer e Beber, focado em gastronomia, e do Movimento BH a Pé, projeto cultural que organiza caminhadas literárias e lúdicas por Belo Horizonte.

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