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E se você não concorda com a cultura que visita?

Durante os seis meses em que eu morei na Índia, eu me senti muito reprimida pela cultura extremamente patriarcal que impera por aquelas bandas. Nesse tempo, eu me vi obrigada a abrir mão da minha independência e liberdade para me adequar ao comportamento esperado de uma mulher por lá. Em alguns momentos, foi fácil negociar: usar roupas discretas, que não revelassem muito do corpo não era nada de mais, mas ter minha liberdade de ir e vir restringida à presença de um homem e sofrer discriminação no ambiente de trabalho foram situações desafiadoras. No início eu tentei ignorar, mas o assédio que sofria fez com que eu voltasse atrás e vivesse de acordo com a cartilha deles. Afinal, a estrangeira ali era eu.

A gente acha que choque cultural é uma coisa supervalorizada até sentí-lo na pele. Quem nunca deixou sua realidade para ver de perto outra completamente diferente não percebe o quanto os valores culturais do lugar onde a gente nasceu moldam a forma como  interpretamos o mundo. Eu mesma não sabia que era tão brasileira até sair do Brasil pela primeira vez. Muitas vezes, esse tipo de choque rende historinhas engraçadas, algumas gafes, bem mais raramente uma confusão ou outra. Em casos mais extremos, no entanto, a cultura de um destino pode entrar em conflito com alguns dos seus valores mais arraigados, aqueles dos quais você tem plena convicção. Quando isso acontece, pode ser um pouco mais difícil de lidar com o tal choque.

A vida das mulheres na Índia

A minha experiência na Índia foi amplificada porque eu não estava ali apenas para tirar foto do Taj. Morar e viver o dia a dia acabou fazendo com que eu me sentisse um pouco parte daquilo – por mais que eu ainda fosse de fora – e tornou tudo mais intenso. E eu me indignava com o tratamento dado à mulher em várias ocasiões, me fervia o sangue. É claro que  eu não poderia ter deixado meu feminismo no Brasil quando eu fui pra lá. Ele é parte da minha personalidade e vai afetar minha forma de perceber as coisas para sempre, em qualquer lugar do mundo, assim como um milhão de outras características que eu tenho.

E eu ficava muito mais indignada com certas situações que outras estrangeiras não-feministas. Se eu sou contra que mulheres sejam subjugadas, humilhadas, assediadas, maltratadas e assassinadas no Brasil, eu não posso considerar que isso seja aceitável em outra parte do mundo, certo? Por outro lado, eu não queria ser intolerante com a cultura local.

Também na Índia, cansei de ver estrangeiros celebrando o caos e a sujeira, dizendo que é exatamente isso que torna o país belo e único. Eu não me importo com o caos, mas a falta de coleta de lixo e de saneamento básico mata 450 mil pessoas por lá a cada ano. Pode ser muito legal e exótico para você que passa as férias, mas aquilo ali não é um cenário fictício montado para sanar o desejo mochileiro pelo diferente. É real, e as pessoas vivem ali e perdem filhos por causa de diarreia todos os dias.

Varanasi, Índia

É um problema muito grave para a população local, para um estrangeiro sair por aí dizendo que é nele que mora a beleza da Índia. Eu não acho isso belo, acho muito triste. E esses viajantes que se consideravam super-abertos me olhavam como se eu não tivesse entendido nada. Como se dissessem que eu deveria ter comprado uma passagem para a Dinamarca. Mas o meu ponto era que, para mim, a Índia é bela e única apesar do lixo, da falta de saneamento básico e do machismo. Se sujeira é a única coisa que você viu de bonito por lá, então, sinto informar, mas foi você que não entendeu nada.

Acho que uma coisa fundamental é descobrir porque o aspecto cultural que incomoda causa esse desconforto. Assim a gente corre menos risco de ser preconceituoso. Uma coisa é esse pessoal que chega num lugar e acha ruim ver as pessoas comendo com a mão ou parando o carro no meio da rua para deixar uma vaca atravessar tranquilamente. Isso é inabilidade de lidar com o diferente.

Pesquisar, ler bastante sobre a cultura do país, e, principalmente, conversar com gente local para entender como eles veem o mundo ajuda a desanuviar muitas ideias pré-concebidas que a gente nem sabia que tinha. Outra coisa completamente diferente, é se indignar com culturas que proíbem meninas de frequentar a escola, mutilam órgãos genitais ou que obrigam crianças a se casarem.

Tuk-Tuk Indiano

Criticar povos que comem carne de cachorro enquanto apreciamos uma picanha, por exemplo, não faz sentido nenhum. Já tive discussões também com gente se indigna com o casamento arranjado. Os indianos estão bem assim e casamento por amor foi uma invenção muito recente pra nós acharmos que tem que ser lei no mundo. Já o dote, que chega a ser motivo de assassinato de mulheres, é um costume que até mesmo as autoridades indianas tentam eliminar.

E quando a gente se depara com um desses traços culturais que não entram na nossa cabeça de jeito nenhum? Bom, nesse caso, é sorrir e acenar. Eu acho que a gente só tem o direito de discordar e nada mais (e quem se importa com o que a gente pensa, né? Só a gente mesmo). Não é legal chegar lá tocando o terror e tentando ditar como as pessoas devem levar as próprias vidas, desrespeitando costumes milenares que a gente muitas vezes nem compreende direito. Conversando com um indiano, por exemplo, eu nunca disse que achava uó aquele sistema de castas. E eu acho. Bastante.

É claro que, em alguns casos – em geral aqueles que envolvem crimes ou atentados aos direitos humanos – dá para voluntariar em uma instituição local, que já tem o apoio e a confiança da população. Alguns exemplos são causas como a educação de meninas ou, no caso da Índia, pelo fim dos dotes, da violência doméstica e pela promoção do saneamento básico. Mas entre ajudar uma organização local que luta por uma causa que a gente apoia e tentar impor nossa forma de ver o mundo aos habitantes locais, há uma diferença enorme.

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Natália Becattini

Sou jornalista, escritora e nômade. Viajo o mundo contando histórias e provando cervejas locais desde 2010. Além do 360meridianos, também falo de viagens na newsletter Migraciones, no Youtube e em inglês no Yes, Summer!. Vem trocar uma ideia comigo no Instagram. Você encontra tudo isso e mais um pouco no meu Site Oficial.

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